Acordo cedo e abro as janelas. Do nono andar, a meio caminho entre a sala e o céu, enxergo a ilha verde, um emaranhado que se destaca entre os prédios e o sol.
Todos os dias passo de carro junto a ela e me intrigo com a vegetação que escapa de seus muros e escoa sobre a calçada vazia. Sim, é uma ilha cercada por todos os lados, mas não por água. O ritmo do trânsito não permite diferenciar o que a ocupa, tampouco o tempo do sinal vermelho é suficiente para descobrir o que abriga além do denso arvoredo.
Hoje me dou conta de que nunca a desbravei – eis um bom programa para o primeiro dia sem chuva da semana que está findando. De tarde, agenda livre, sol de primavera em um céu azul chapado pelo vento. Saio de casa a pé, disposta a conhecer o entorno de onde vivo; óculos de sol, celular e olhar sensível são minhas ferramentas para registrar a caminhada.
Ao trilhar lombas e curvas suaves, percebo placas de pequenos comércios e prestadores de serviço do bairro, jardins bem cuidados e árvores prestes a cair. Encontro pet shop, salão de beleza, borracharia e posto de combustível. Deparo-me com uma loja de africanidades cujo nome me leva a fazer uma rápida busca no Google – Ewé se refere aos vegetais em geral usados no cerimonial das religiões de matriz africana.
A porta de vidro reflete a vida aqui fora, como se fosse um umbral entre dois tempos e espaços, um presente e outro em potencial. Ao lado, localiza-se um terreiro de umbanda.
Chego ao cruzamento onde se faz a música que escuto de longe à noite, com seu tilintar suave e a batida abafada pela distância. Ao passar de carro, muitas vezes me deparo com oferendas recentes de umbanda e outras já desfeitas, o que me faz pensar em quem as prepara e para quais intenções. Minha familiaridade com essa religião se resume a consultas eventuais há muito tempo em busca de apaziguamento do coração e da mente. Lembro da casa, das vestimentas, do ambiente perfumado e da paz recuperada. Rememoro algumas das orientações então recebidas.
Mais adiante, o parque para skatistas que explode em música nos fins de semana, animando os praticantes e perseguindo a vizinhança. Ondas de cimento e espirais de ferro decoram o espaço, dando uma sensação de movimento que enleva os artistas sobre rodas e que emoldura o bosque em frente. Cães de rua e de estimação, nenês e crianças maiores, gurizada experiente e novatos, todos se reúnem para a exibição acrobática regada a coragem e ousadia em disputa com ciclistas. Na época de sua criação, não havia unanimidade quanto ao uso previsto, muito devido a preconceito contra os prováveis frequentadores e aos riscos inerentes à prática amadora do esporte.
Sigo pela calçada, buscando a sombra de seringueiras. Não demora muito para eu sentir todo aquele verde, uma floresta Amazônica aprisionada pelas grades no meio da cidade grande, com uma vegetação que compete em altura com os postes de eletricidade. Linhas verticais e horizontais riscam as árvores enroscadas umas nas outras, em uma aula viva de interação.
Ramos escapam pelo gradil de concreto e insistem em oferecer sombra a algum passante, criatura muito rara por aqui. Flores presenteadas pelos ipês pintam a calçada de amarelo; alguns transeuntes são indiferentes, outros consideram a vista como falta de limpeza.
Porém, desde quando a beleza natural passou a ser considerada lixo?
Sobre o basalto elas formam um bordado espontâneo e fugaz, à mercê do primeiro vento que soprar.
Espio através das frestas do muro vazado e entrevejo a mescla de elementos que eu já intuía à distância. Natureza, obra, criação e criaturas ocupam um território vivo. Aqui parecem representar certa harmonia entre a vida e o viver com suas nuances e limitações radicais, marcantes em uma época de transpandemia.
Dobro à esquerda; encontro frutaria, sapateiro, florista e até um centro de saúde imenso, que oferece diferentes âmbitos de cuidado. Corre uma piada de que, caso não resolva, é só atravessar a rua e… entrar no Cemitério Municipal São João. Sim, eu havia chegado na entrada principal da minha ilha verde, naquele lugar por onde tantas vezes eu já havia passado, só que agora com outros olhos. Mais demorados. Olhos de quem busca ver além daquilo que qualquer um pode enxergar.
Logo percebo que a placa indicativa dos horários de visitação está gasta, o que inevitavelmente me leva a fazer uma indagação que beira o irônico: será que as normas foram flexibilizadas ou quem entra não tem hora para sair?
Fundado em 1936 na região oposta àquela onde se encontram os demais cemitérios da cidade, oferece 9,5 hectares de sombra e tranquilidade em meio a um bairro residencial. Dados oficiais informam que são aproximadamente doze mil jazigos temporários e perpétuos, incluindo gavetas, túmulos e capelas.
À distância, alguém cantarola uma canção popular e identifico um operário cumprindo suas funções aplicando cimento a uma laje de túmulo vertical. Mais adiante, um rádio transmite manchetes de futebol. Escuto risadas e conversas animadas de funcionárias e funcionários que atuam na limpeza e manutenção, contrastando com a sobriedade de duas visitantes que descem de um táxi. Convivência e labor se mesclam com alegria e tarefa cumprida.
Subo e desço escadarias, são vários desníveis que disfarçam recantos à sombra. Bancos coloridos convidam para um encontro consigo e com outrem. Imagino-os um dia ocupados por escolares fazendo trabalhos em grupo e pessoas lendo, descansando após o almoço e até checando sua rede social. Pergunto-me quantas lembranças já foram trocadas por ali?
Há uma semana foi comemorado o Dia de Finados e o fio das calçadas e dos canteiros foi recentemente caiado. Plantas naturais ainda enfeitam vários túmulos em meio a flores de plástico e velas meio queimadas. Uma pá descansa contra uma árvore à espera de quem a maneje. Nada como ter uma ferramenta à mão, seja lá de quem for.
Ali perto, um homem uniformizado molha um vaso com flores amarelas na torneira pública e comenta comigo: “Tá bonito, né?
Vou regar e devolver logo ao túmulo. Vai que o dono me acuse de roubar!”. Surpresa com o cuidado, respondo que faz bem – a quem? Encontro jazigos com muitos nomes e fotos de familiares ali repousando; penso em gerações de histórias esperançosas e feitos talvez nem tão valentes, mas ainda assim ali considerados admiráveis.
Ao sol, as imagens parecem dizer “lembrem de mim, estou aqui.”
Pode ser Maria das Dores (sorrindo) e João dos Prazeres (carrancudo). Dores e Prazeres dividindo o mesmo chão. Como na vida. Ah, também está lá Joaninha de Tal (bem velhinha).
Tumbas muito antigas, descuidadas, cobertas por mato, quase abandonadas, me lembram do conceito de simbiose – planta e pedra, antigo e novo, vida e morte em inter-relação. Penso naqueles que se foram, talvez sem deixar herdeiros. Reflito sobre a situação de ser sem estar – ser alguém, mas não estar mais com ninguém, ter sido alguém que marcou sua época e que agora nem nome mais tem naquela que seria sua última morada. Não passa de um número de registro no arquivo.
Um anjo quebrado, caído, abandonado sobre uma sepultura árida. O que terá acontecido a este ser? Seria pétreo, frio, insensível?
A quem afetou na vida, quem dele se recorda, quem prefere esquecê-lo para sempre? Talvez uma tempestade tenha abatido a peça de arte funerária e alguma alma piedosa a tenha deixado ali à espera de um milagre?
Converso com um funcionário sobre a infraestrutura do local.
Entre um dado e outro, ele me informa que a cidade oferece o chamado “enterro do pobre” (denominação popular para Sepultamento Gratuito Municipal), prestado a indigentes e pessoas em pobreza extrema. O serviço consiste em um caixão simples e um velório realizado em uma sala onde cabem apenas o esquife, uma cadeira e um ventilador. Para ser enterrado aqui, o óbito da pessoa necessitada deve ocorrer em uma 5a ou 6a feira; se for em outros dias da semana, o serviço será prestado em um de dois outros cemitérios da cidade, localizados em bairros distantes daqui. Agradeço ao rapaz e sigo pelo parque.
Em seguida me deparo com um recanto suntuoso, ocupado por capelas construídas por famílias abonadas e ordens religiosas. Sua imponência contrasta com a sobriedade do entorno e a natureza espontânea – a desigualdade social escancarada até na vida eterna.
A caminhada continua cercada por ruídos urbanos abafados pela mata e suplantados pelo canto dos pássaros, alguns incógnitos diferentes ao meu ouvido pouco afinado. Motores, aceleração, freada, tudo parece distante, vindo de outro mundo. Um túnel verde é uma passarela entre quadras e recantos, uma passagem entre dimensões e planos misteriosos à minha vivência agnóstica.
Prestes a terminar minha excursão, continuo desfrutando do verdor da ilha que me acompanha desde a infância, mas cujo interior ainda não tinha explorado. Com tantas transgressões na minha trajetória, nunca tinha me permitido cruzar o portão que comunica os dois lados da vida civil rumo a um ambiente que traduz a dinâmica entre ser e não-ser e entre os tempos do vivido, do viver e do porvir.
Ao ir embora por outro portão, dou de cara com o outdoor de uma faculdade situada em frente à saída do cemitério. Os jovens protagonistas sorriem para o slogan “O futuro já é nosso” e eu sorrio também pelo inusitado da composição mercadológica naquele ponto da cidade.
Em tempos de discussão sobre o cercamento de parques públicos em Porto Alegre em prol da segurança dos usuários, encontrei um local já cercado, organizado, limpo, aconchegante, e oferecendo tantas atividades que podem contrabalançar nossa vida acelerada com silêncio, calma e perspectiva de futuro.
Esta fotocaminhada traz consigo as vozes daqueles que dão sentido a esse espaço e que nos fizeram possíveis. Então, talvez uma cerca possa ser viva, pois contém vida.
Texto publicado no livro Atos Literários, Desconcertos Editora (2023)