Que bom seria poder construir alguma coisa para logo em seguida desfazer e criar outra!
Brincava assim quando criança. Era muito prazeroso fazer um castelo de areia e logo desmanchá-lo em uma corrida contra as ondas do mar. A água levava a areia e eu corria atrás das peças Lego que ocupavam as sacadas e os portões da minha obra.
Da mesma forma, adorava afundar a colher no purê de batatas esculpido em formato de vulcão e na gelatina apenas saída da geladeira. Acho que me sentia poderosa em transgredir algum costume caseiro tácito – afinal, qual o prazer de comer o mingau pelas bordas?
Esvaziava a panqueca para comer o recheio em busca da prenda que minha mãe poderia ter escondido exatamente naquela – às vezes uma colherinha, outras uma moeda. Também comia primeiro a camada crocante do bife à milanesa, descolando-a com a faca para saborear o empanado antes.
Lia o capítulo final dos livros para alimentar a curiosidade sobre a história contada para, quem sabe, pensar em outro epílogo.
Acho que fazia tudo isso pelo medo de perder algo, seja brincadeira, paladar ou segredo.
Hoje, começo a descascar a laranja pelo meio e me desafio a criar duas espirais iguais, devoro o recheio da borda da pizza antes da dita cuja e vou roendo a cobertura do bombom Ouro Branco até chegar ao recheio inigualável.
Ao trabalhar com longas planilhas de dados, inicio pelo meio e vou subindo ou descendo, marcando com cores diferentes o que já fiz, o que falta, repetições, falhas etc. Quando me perguntam quanto falta, basta filtrar por cor. À primeira vista, parece que muito está feito.
Não sei se sofro de TOC, mania ou ansiedade. Talvez precise me sentir singular entre tantos irmãos, colegas, subordinados e chefes. É possível que eu continue assumindo meu caráter transgressor para marcar a liberdade que me falta no cotidiano.
Só sei que adoro começar a escrever um texto pelo fim para depois reconfigurá-lo como se fosse um quebra-cabeça, que aliás monto a partir do centro, não de uma peça de canto.
Ah, também prefiro escrever com lápis rombo e uma borracha ao lado. Foi assim que me fiz cronista.
Porto Alegre, 30 de outubro de 2023.