Há milênios a humanidade convive com a guerra, seja por disputa territorial, cobiça de recursos naturais, para instaurar determinada visão de mundo, para impor hegemonia religiosa ou outras motivações.
Os componentes básicos de um conflito bélico seriam a identificação (ou criação) de um inimigo, a existência de combatentes e defensores e o uso de recursos tecnológicos voltados à destruição do oponente. No mundo ocidentalizado, tática e estratégia são idealizadas por militares de alta patente para serem implementadas por subalternos, aqueles que entrarão em campo para aniquilar o antagonista.
Mais recentemente, a terminologia belicosa foi incorporada ao vocabulário usual no campo da saúde e da doença para denotar os elementos dignos de atenção: germes como ameaça, medicamentos e vacinas como armas e profissionais como defensores da vida a todo custo, inclusive da própria.
Na pandemia da Covid-19, essa linguagem belicista passou a ser ainda mais evidente, tendo em vista o grau de risco ao qual os trabalhadores da saúde estavam expostos pelo contato com pacientes contaminados. A mídia utilizou à exaustão termos como “heróis” do “front” para “combate” ao “inimigo”.
Essa foi a situação encarada por Alberto.
Era o primogênito, o primeiro na lista de chamada, o mais aplicado. Deixava de brincar para ajudar o pai na garagem depois de fazer o tema de casa. Detalhista, examinava a trena, o paquímetro, a furadeira. Adorava matemática, depois física e biologia. Lia tudo o que encontrava, de gibi a bula de remédio. Infernizava a mãe com perguntas do tipo “o que é posologia?”
No futebol, era mais ou menos. Gostava mesmo era de atletismo porque planejava a arrancada, contava as passadas, calculava a velocidade. Cresceu tanto que saiu da curva, passou a usar tênis 39 antes de ter bigode no rosto. Os manos ficaram para trás em tudo, inclusive nas notas.
Enterrado nos livros, foi aprovado no Enem de cara. Conquistou a vaga que buscava no curso de fisioterapia e, mais do que isso, o tão sonhado primeiro lugar. Agora era hora de curtir a folga até o início das aulas – #sqn.
Fez carteira de motorista e de trabalho e conversação avançada em inglês. Na faculdade, estudou com afinco o movimento humano e aprendeu a tratar seus distúrbios. Graduou-se no tempo mínimo necessário, foi orador da turma e recebeu o prêmio por mérito acadêmico.
Logo após a formatura, ingressou como residente no programa multiprofissional com ênfase na atenção ao paciente crítico desenvolvido pelo hospital onde tinha sido estagiário. A bolsa era menor do que o salário e a jornada bem mais extensa do que a carga-horária dos contratados, mas sabia o que pretendia alcançar dali a dois anos.
Tudo mudou no início da residência. Ele e seus colegas de outras profissões foram convocados para atender pacientes afetados pelo novo coronavírus, de incubação rápida e desfecho alarmante. A rotina planejada por Alberto foi deixada para trás ao testemunhar pessoas até então hígidas entrarem pela Emergência e não sobreviverem à internação na UTI. Passou a desempenhar atividades até então impensadas e oferecia o celular para que os enfermos se despedissem de seus familiares com um “até logo”, na esperança de que o isolamento fosse temporário. Deu-se conta de que muitos não retornariam para casa e ia chorar por escassos minutos na porta da sala de descanso. O equipamento de proteção só era retirado ao fim da jornada de doze horas, inclusive a fralda.
Os vizinhos se esquivavam quando o viam entrando pela portaria do edifício por receio de serem contaminados por ele no elevador. A namorada cansou, os amigos se afastaram, a família se isolou.
Os plantões se acumulavam para substituir colegas afastados por adoecimento físico e emocional, assim como teve suas funções assumidas por algum membro da equipe quando precisou de tratamento para si.
Recuperou-se e, de costas para a vida lá fora, por dever ao juramento prestado, continuou na linha de frente.
A concepção contemporânea de linha de frente vai além de combatentes avançando lado a lado em um conflito armado rumo a um alvo. No campo da saúde, inclui a equipe formada por trabalhadores oriundos de várias profissões em diálogo e solidariedade para assumir decisões tomadas em situação. São assistentes sociais, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas, psicólogos e técnicos de enfermagem que lutam para superar barreiras hierárquicas e dificuldades de recursos em prol do bem-estar de outrem.
O apoio mútuo na incerteza constitui o foco do trabalho para e pelo outro. Ao invés de matar, ajudar a viver; não são heróis, mas pessoas qualificadas para o cuidado em saúde.
Texto publicado no livro “Palavras que mudaram o mundo” (Metamorfose 2023)