Louco de sede, busca uma lata qualquer, cheia ou vazia, redonda ou amassada.
Manco e cegueta, perdeu dois dedos ao pular um arame farpado e o olho direito em uma briga contra um maioral do bairro.
A barriga lisa, quase osso, ronca a cada hora sem pressa, apenas está lá, e seu paladar sem refino traça de sobra de alface a polenta de ontem.
A pele manchada, não se sabe se por sujeira ou de nascimento, sofre com uma comichão impertinente que o impede de dormir em paz. O bigode se eriça ao pressentir provocações e, sempre atento, aprendeu a farejar o perigo de longe e a não se arriscar além do necessário.
Já escutou de tudo nesta vida, de berros a súplicas, de negativas a desculpas. Foi escorraçado, traído, alimentado, acarinhado, teve sua coberta roubada e dormiu sobre papelão. O carrinho atulhado é sua casa, seu teto, sua herança, sem saber de quem nem para quem.
Seus companheiros de rua, cúmplices no inverno e andarilhos no verão, aceitam novatos e acolhem os já vividos. De noite, a conversa se resume a grunhidos entre sonhos e o sono é movido a lembranças das ruas e dos becos, das pontes e das praças onde já se acomodou por um tempo.
Gerou uma prole perdida por aí e de vez em quando ainda acha uma companheira, mas o instinto de sobrevivência a leva adiante.
Sente falta do carinho de sua mãe, que cedo o largou no mundo. Mesmo assim, seguiu em frente resoluto, sabendo o que quer, embora raramente encontre. Com poucos e fiéis amigos, divide o que tem como apenas os vagabundos conseguem fazer. Os demais, chiques e perfumados, apenas se relacionam.
Nasceu em uma noite de Natal, mas nunca teve presente, apenas um passado incerto e um futuro difícil. No fim das contas, Noel é um sobrevivente.
Um cachorro-gente.